25.11.13
Um Infatigável Viajante ( Republicado )
Anteontem, pelos intermináveis, inesperados caminhos do correio electrónico, consumada maravilha da nossa tecnológica era, recebi, em forma de humorística nota de registo, uma pequena maldade, levemente perversa, que alguém quis fazer ao reincidente Candidato Mário Soares.
Trata-se da relação das viagens que Soares efectuou, como Presidente da República Portuguesa, nos anos (1986-Janeiro de 1996, perceber-se-á à frente a razão do pormenor) em que desempenhou essa função ou, mais bem dito, esse alto e prestigiado cargo ou ainda, como também já se disse, a mais alta magistratura da Nação.
Tinha eu, obviamente, como todos os portugueses, a noção de que Soares viajara imenso, mas a descrição, um tanto pormenorizada, que, na dita relação, se mostrava à frente de meus esbugalhados e quase incrédulos olhos, reavivara-me de súbito a minha mui estimada memória.
Em modo resumido, anotarei aqui, para os nossos estóicos concidadãos poderem igualmente recuperar dos escaninhos dos seus sobrecarregados cérebros esses fugidios dados, porventura já algo esmaecidos, os principais elementos dessa nota recebida.
Naqueles dez dourados anos, Soares realizou qualquer coisa como 145 viagens presidenciais pelo mundo, percorrendo, segundo lá constava, 992 809 km, gastando nessas alegres caravanas cerca de 580 dias, o que equivale a dizer que Soares andou mais de ano e meio em animadas digressões atravessando continentes pelos mais diversos climas.
Por momentos, aflorou ao meu espírito o título do livro que a criativa imaginação de Júlio Verne produziu – Dois Anos em Férias. Soares não chegou lá, mas aproximou-se bastante desse marco, com a extraordinária circunstância de o ter feito em serviço, em regime de ajudas de custo. Abençoado regime e mais quem o inventou que tais obséquios concede, ainda que apenas a raros eleitos.
Dispondo-se de limitado pecúlio, mais vale favorecer uns poucos, com exuberância, que distribui-lo equitativamente por muitos, deixando todos insatisfeitos. Deve ser este o pragmático critério dos nossos excelsos republicanos, laicos e, quiçá até, socialistas.
Para confirmar um dos dados, fui relembrar-me do valor do raio da terra – Rt = 6378 km – e, só com a matemática da antiga Grécia, ainda hoje a mais utilizada, obtido o perímetro da Terra, fui ver quantas vezes este cabia naquele gordo número acima citado, o dos périplos soaristas.
Cheguei naturalmente a esta fantástica relação: cerca de 25, ou seja, Soares conseguiu este feito absolutamente notável, digno de figurar em qualquer arquivo de excentricidades, de ter realizado cerca de 25 voltas à Terra enquanto foi Presidente da assaz modesta República Portuguesa. Pobre Fernão de Magalhães, seu distante antecessor no cometimento, que nem pôde terminar a sua pioneira aventura !
Nos tais dez fantásticos anos, visitou Soares 57 países, alguns por várias vezes, como a Espanha e a França, ambos por mais de 20 vezes. Há mesmo anos verdadeiramente pródigos, como o de 1994, em que vai duas vezes ao Brasil, uma no início e outra no fim do ano, passando, só nestas duas visitas, 20 animados dias da sua certamente palpitante vida.
Aliás, neste, presumivelmente para si, maravilhoso ano de 1994, entre as suas agitadas tarefas de «descooperação» institucional, como a Conferência Portugal e o Futuro, os jantares no Avis, com a corte de indefectíveis camaradas, sempre prontos a salvar a Nação mal conduzida, logrou Soares, ainda assim, efectuar 23 frutuosas viagens oficiais, gastando nelas 104 dias; é verdade que ao serviço do País, com a autorização da compreensiva e benevolente Assembleia da República; em todo o caso, averbando neste ponto um registo difícil de igualar, apesar da emulação tampouco despicienda de quem se lhe seguiu.
No ano de 1996, a poucas semanas de concluir o seu segundo e definitivo – pensaríamos nós – mandato, quando iria ser substituído na função por um correligionário, homem de verbo fácil, analogamente habituado às lides tribunícias, tão do agrado de Soares, o que decerto o deixaria tranquilizado, ainda achou disponibilidade para, esforçadamente, fazer mais uma visita de Estado a Angola, nos primeiros dias de Janeiro desse, julgaríamos nós, desavisados ingénuos, derradeiro ano de despedida das ambições políticas de Soares.
Se somarmos a tudo isto os percursos das viagens que fez quando foi Ministro dos Negócios Estrangeiros dos primeiros Governos Provisórios, logo a seguir à Revolução de 25 de Abril de 1974, as viagens como Primeiro-Ministro, como Secretário-Geral do Partido Socialista, como dirigente da Internacional Socialista, como Deputado Europeu, como Conferencista, coleccionando Doutoramentos Honoris Causa, as viagens particulares, as do exílio, etc., etc., quantas mais voltas à Terra terá dado este verdadeiro «Cavaleiro Andante» da nossa parca, mas generosa, pátria lusitana !
Se, cumulativamente, nos recordarmos das largas comitivas que sempre acompanhavam Soares e da alentada logística que as mesmas justificadamente requeriam, poderemos estimar, ainda que por alto, mesmo acreditando que Portugal haja retirado alguns benefícios dessas exuberantes viagens, os elevados encargos que daí advieram.
A frequentemente citada relação custo/benefício, tão do agrado dos nossos magníficos Gestores, deve ter ficado aqui deveras interessante. Haja quem a calcule, numa oportuna tese de Mestrado ou de Doutoramento, para nosso espiritual descanso ou inexorável irritação.
E aqui temos, deliciados concidadãos desta vetusta e depauperada Nação, como, sendo a Ordem pobre, podem alguns Confrades nela viver à rica, no caso, talvez à francesa, dada a preferência cultural do nosso novel Candidato, apesar de reincidente na pretensão, a Presidente da República.
Que melhor currículo poderá Soares apresentar para nos tirar da «apagada e vil tristeza» em que inapelavelmente nos achamos, ao cabo destes trinta gloriosos anos de uma algo distraída Democracia, generosa para alguns, avara para muitos, não obstante a costumada retórica parlamentar nos afiançar a sua putativa vocação libertadora, igualitária, fraternal e solidária.
Ânimo, ainda assim, sofredores cidadãos de inquebrantável têmpera, que melhores dias hão-de vir, sobretudo se não quisermos premiar a diversão, a pândega, a alegre e despreocupada leviandade que nos trouxe até à actual crise, amarga e persistente, a qual, pese a conveniente amnésia de muitos, tem, contudo, paternidade conhecida. Nunca disto nos esqueçamos, prezados Concidadãos nossos ! Para mais, consolemo-nos, que os crimes morais, historicamente, não prescrevem nunca, ainda que fiquem todos por punir !
Bom resto de fim-de-semana, com castanhas assadas e vinho novo, se o puderdes assim passar, meus amáveis e condescendentes Compatriotas, que, ao longo da nossa rica mas conturbada História, já muitos Santos de pau carunchoso temos venerado !
É hora de arrepiar caminho, de sair do Nevoeiro, como há muitos anos já o grande Pessoa nos aconselhava...
Comments:
<< Home
Caríssimo amigo
Cheguei a pensar que algo lhe tinha acontecido e que me veria definitivamente privado destes seus belos textos.
Mas ainda bem que mantive o seu "Alma Lusíada" na lista dos blogues preferidos. Acabei por ser premiado.
Escusado será dizer que concordo inteiramente consigo. Mas cheguei à triste conclusão de que, se a Madeira fosse independente, teríamos aqui um competidor à altura…
Um abraço
Enviar um comentário
Cheguei a pensar que algo lhe tinha acontecido e que me veria definitivamente privado destes seus belos textos.
Mas ainda bem que mantive o seu "Alma Lusíada" na lista dos blogues preferidos. Acabei por ser premiado.
Escusado será dizer que concordo inteiramente consigo. Mas cheguei à triste conclusão de que, se a Madeira fosse independente, teríamos aqui um competidor à altura…
Um abraço
<< Home